domingo, 21 de outubro de 2012

A Europa Medieval sob a ótica de Jacques Le Goff



Jacques Le Goff, sem sombra de dúvida, é uma das maiores autoridades quando o assunto é História Medieval: o historiador francês, além de possuir um currículo invejável, possui também uma vasta produção bibliográfica relacionada ao eixo ocidente-medievo.
O autor por vezes enaltece um caráter interdependente da religião e da política ocidental, evocando particularidades de um ocidente ainda fragmentário em busca da gênese da atual Europa: o diálogo impressionante feito sob a ótica de Le Goff, sem dúvidas, merece os aplausos de toda uma geração de historiadores que muito se beneficiaram das produções do mestre francês.
 “Raízes Medievais da Europa” e “O Apogeu da Cidade Medieval” são leituras fulcrais a um melhor entendimento da realidade vivida no referido período histórico no eixo ocidente-medievo.
Destarte, o autor do blog reserva-se ao direito de incluir também algumas extrações de fontes sobre Filosofia Medieval – a mero efeito complementar.
Aproveitem as leituras!


Jacques Le Goff – Raízes Medievais da Europa:


Jacques Le Goff – O Apogeu da Cidade Medieval:



Extrato de Fontes – História da Filosofia Medieval:


sábado, 20 de outubro de 2012

Mitologias: o pincel dos deuses nas mãos do homem



O homem nasce sem qualquer tipo de bagagem intelectual, e, portanto, em seus primeiros anos de vida absorve com maior facilidade milhares de informações e conceitos, criando em si o que podemos chamar de intelecto humano.
A sentença acima aborda, grossíssimo modo, sobre as concepções piagetianas do conhecimento, as quais são muito importantes na construção que será feita doravante.
A partir do momento em que aceitamos que o homem nasce sem uma bagagem intelectual, passamos a reconhecer o fato de que toda a construção humana é incutida na mente do indivíduo desde tenra idade, fazendo com que este se integre de forma efetiva ao coletivo, ou seja, à sociedade. Esta perpetuação das construções humanas (saberes) desde muito cedo esteve intimamente ligada à experiência religiosa – e aqui compete discutirmos especificamente sobre a experiência mitológica.
Já dizia Mircea Eliade que a primeira experiência própria que o homem tem com seu criador é ao contemplar a infinitude do céu.
Ora: quando o homem olha para uma montanha no horizonte, embora longínqua, ele sabe que se empregar todos os seus esforços pode subi-la; que ao olhar para uma ilha no além-mar, por mais difícil que seja, ele pode alcançá-la.
No entanto... quando este mesmo homem depara-se com o céu sob sua cabeça, ele sabe: jamais alcançá-lo-ei. O céu era o limite para este homem primitivo, que ainda não gozava dos privilégios de um foguete movido a hidrogênio.
Ao deparar-se com o céu o homem então percebe que existe algo maior do que ele próprio, e que este algo maior está além daquele céu. É a força que move o sol de todas as manhãs; a força que faz com que as estrelas brilhem à noite, e que transforma a lua em pequenas frações com o passar dos dias, só para trazê-la em todo o seu esplendor dias depois.
Cria-se, portanto, a concepção do deus criador – o deus primeiro: o grande arquiteto que está acima de tudo e todos.
Mas com o tempo este homem percebe que este deus é muito distante dele: é um deus tão excelso em sua essência que parece não estar presente na vida do homem. Portanto, o homem concebe um deus mais próximo a ele – um deus abaixo do arquiteto primeiro, mas que ainda assim é imensamente poderoso e, o mais importante: está mais próximo do homem.
Portanto, quando o homem depara-se com fenômenos aos quais percebe que não consegue explicar, igualmente idealiza um artífice divino que seja o responsável por tais fenômenos. E estes fenômenos podem ser divididos em dois subgrupos: os supernaturais exteriores e os naturais interiores.
Os supernaturais exteriores concernem àqueles fenômenos que existem mesmo sem a presença do homem: a chuva; o raio; o arco-íris; a neve; o nascer do sol; os eclipses, etc. Já os naturais interiores concernem aos fenômenos que só o homem pode perceber: nascimento e morte; o tempo; o bem e o mal (já polarizados mas externalizados nas ações humanas), etc.
O homem toma o pincel das mãos do grande artífice (o deus primeiro) e desenha, a seu modo, outros deuses que compartilhem de suas alegrias e angústias: deuses da sexualidade; deuses da guerra; deuses da vida e da morte; deuses da justiça; deuses da caça e da pesca; deuses da sabedoria; etc.
Muito das criações mitológicas foram registradas por suas respectivas culturas, e uma obra fantástica que certamente contempla uma grande parte delas é a de Thomas Bulfinch, estudioso que dedicou grande parte de sua vida aos estudos na área de mitologia.
O resultado vocês conferem em sua magna opus chamada “O Livro de Ouro da Mitologia”.


Thomas Bulfinch - O Livro de Ouro da Mitologia: 


domingo, 14 de outubro de 2012

Mitos de criação: os vikings.




Embora os vikings possuíssem um sistema de escrita (o rúnico), não produziram literatura escrita, mas sim uma vasta tradição oral.[1] As fontes escritas existentes sobre a mitologia nórdica referem-se às compilações feitas entre os séculos VIII e XIII, já sob influência cristã (uma vez que, ao colonizar a Islândia, os próprios islandeses incumbiram-se da tarefa de registrar os principais mitos e tradições).[2] No entanto, uma das fontes mais completas sobre a mitologia nórdica concerne ao trabalho do poeta e historiador islandês Snorri Sturluson, que compilara todos os mitos nórdicos de que tivera conhecimento em seu Edda em prosa[3]um manual de poesia escáldica em três partes cujo prefácio, o Gylfaginning, é uma introdução à panteologia nórdica.[4]
Sobre a tradição mitológica dos vikings, Wilkinson[5] afirma que:


Os grandes mitos nórdicos tratam dos grandes temas: a criação do cosmo, as batalhas e amores dos deuses e o fim do mundo. Os nórdicos imaginaram diversas raças de seres mitológicos – de gigantes a anões – que habitam mundos diferentes, paralelos ao nosso, o qual é conhecido como Midgard. A cultura das divindades é bélica e heroica, e o mundo mítico e real se encontram em Valhalla, o grande salão da divindade maior, Odin, onde as almas dos heróis humanos mortos recebem seu galardão celeste.


Gylfaginning apresenta a cosmogonia presente nos poemas do Edda (Vafthrúdhnismál Grimnismál e Voluspá)[6], contando como o mundo surgira a partir do vazio primordial – chamado Ginnungagap. Aos poucos então foram surgindo dois reinos nas extremidades desse vazio: Muspelheim, região do calor e do fogo localizada ao sul; e Niflheim, região do frio e do gelo, localizada ao norte.[7] Do encontro entre os ares de Muspelheim e Niflheim surge o primeiro ser, um gigante de gelo chamado Ymir, do qual surgiram outros gigantes e a vaca Audhumla.[8] Do leite de Audhumla os gigantes alimentaram-se, e com o tempo mais gigantes surgiram (como Buri, Bor, Bestla e Bolthorn), sendo que do relacionamento entre Bor e Bestla sugiram três filhos: Odin, Vili e Ve.[9]
O mito conta que os três irmãos mataram Ymir e construíram o mundo a partir do seu corpo – sendo que Midgard concernia à morada dos homens, e Asgard à morada dos deuses (com todos os mundos sendo sustentados pela árvore Yggdrassil, axis mundi).[10] O casal primordial fora criado por Odin, sendo Askr o primeiro homem e Embla a primeira mulher (sendo ambos criados a partir de árvores).[11]
Os deuses eram então divididos em diferentes classes: os Aesir (deuses celestes, representados por Odin, Vili e Ve) e os Vanir (divindades da Terra, representados por Njord e seus filhos Freyr e Freyja).[12]
A forma de adoração destes deuses em geral estava associada a sacrifícios rituais por enforcamento, além de saques e pilhagens durante a experiência religiosa do berserkr (furor assassino e de invulnerabilidade chamado de “pele de urso”)[13]; quanto ao culto destes deuses, sabe-se que Odin gozava de popularidade somente entre os jarls (nobreza nórdica), sendo que entre o estrato dos kalrs (homens livres) o deus mais popular era Thor.[14]
Acreditava-se que Odin vivia num salão ostentoso chamado Valhalla (ou “salão dos mortos em batalha”), no qual recebia as almas dos guerreiros nórdicos mortos em batalhas, recompensando-os com presentes e honrarias.[15] Era aqui também que os guerreiros banqueteavam-se com carne de javali e com o hidromel servido pelas valquírias, além de treinarem para o evento escatológico chamado Ragnarök.[16]
Segundo a escatologia nórdica o fim do mundo estava ligado às ações do deus metamorfo Loki (pertencente à categoria dos deuses trapaceiros)[17], que em uma de suas malfeitorias causara a morte do deus Balder, filho de Odin; destarte, somado a esse feito, a própria árvore Yggdrassil teria sua folhagem devorada pelos cervos Dáin, Dvalin, Dúneyr e Durathrór, com sua casca em processo acelerado de apodrecimento e a raiz sendo roída pela serpente Nidhogg.[18] Durante este processo, Loki – até então aprisionado desde a morte de Balder –, libertar-se-ia de seus tormentos e convocaria todas as forças contra os Aesir: junto de si traria seu filho Fenrir, um lobo gigante; a serpente Jörmungand; a deusa Hel, além dos gigantes do fogo e do gelo.[19]
Wilkinson [20] apresenta as consequências do embate final:


A luta será cruel e não haverá vencedores. Bem e mal serão destruídos. Por fim, só restará da população do universo uma enorme montanha de cadáveres. Os únicos sobreviventes serão o gigante do fogo Surt, além de um casal de humanos e uns poucos animais que tiverem conseguido se ocultar entre os galhos da árvore do mundo, Yggdrassil. Surt fará dos cadáveres uma grande fogueira para ter certeza de não haver sobreviventes entre eles, eliminando de vez do universo todos os monstros e espécies de demônios e elfos. O fogo destruidor seguirá queimando por anos a fio e a Terra afundará no mar.


Após a consumação do fim deste mundo, um novo mundo surgiria, no qual Balder seria o novo senhor de um universo sem a nódoa do mal.[21]


 REFERÊNCIAS

  
ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan Petru. Dicionário de religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  
WILKINSON, Philip. Mitos & lendas: origens e significados. São Paulo: Martins Fontes, 2010.



[1] WILKINSON, Philip. Mitos & lendas: origens e significados. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 89.
[2] Id.
[3] Id.
[4] ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan Petru. Dicionário de religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 153
[5] WILKINSON, loc. cit.
[6] ELIADE, loc. cit.
[7] WILKINSON, Philip. Mitos & lendas: origens e significados. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 90.
[8] Id.
[9] Id.
[10] ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan Petru. Dicionário de religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 154.
[11] Id.
[12] WILKINSON, op. cit., 2010, p. 91.
[13] ELIADE, op. cit., 2003, p. 157.
[14] Id.
[15] WILKINSON, op. cit., 2010, p. 99.
[16] WILKINSON, Philip. Mitos & lendas: origens e significados. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 99.
[17] ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan Petru. Dicionário de religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 155.
[18] Ibid., 2003, p. 155-156.
[19] Id.
[20] WILKINSON, op. cit., 2010, p. 98.
[21] Ibid., 2010, p. 99.



sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Entre o bem e o mal: a demonização do deus Seth



Os antigos egípcios alimentavam a crença de que o mundo era composto por diversos deuses (politeísmo), sendo que estes estavam intimamente relacionados com as mais diversas práticas sociais da cultura egípcia: logo, todas as estruturas sociais estavam amparadas num forte senso religioso, que inclusive embasava o comportamento e as leis no Antigo Egito.
Nas variedades dos mitos de criação egípcios, encontramos a distinção entre deuses de primeira, segunda e terceira ordem, ou seja: deuses primordiais (criadores do céu e da terra), deuses secundários (em geral associados às forças da natureza e seus elementos, ou mesmo aos astros) e deuses terciários – cujas funções variam entre auxiliar os homens e mesmo vigia-los para que estes não vão contra a vontade dos deuses (a lei pregada na Maat, por exemplo).
E é entre todos os mais de setecentos deuses egípcios até hoje conhecidos que encontramos a figura do deus Seth – que é aquele que possui, talvez, um dos históricos mais conturbados.
Desde seu surgimento até a sua integração ao mundo egípcio, Seth passa por posições inicialmente favoráveis até posições em que passa a ser concebido como o próprio receptáculo do mal – sendo o objetivo deste estudo demonstrar a evolução da personagem Seth na mitologia egípcia no decorrer da história deste povo.
Filho de Nut (deusa do céu) e Geb (deus da terra), conta-se que Seth (“Setekh”, “Setesh”, “Suty” ou também “Sutekh”) teria rasgado o ventre de sua própria mãe ao nascer – dando assim a tônica no tocante à sua personalidade, deveras, violenta. Adorado como o deus das tempestades, do deserto e dos estrangeiros, sabe-se que durante o processo de sua construção tornou-se também o deus da escuridão, do caos e da hostilidade.
Tendo seu culto concentrado na região do Alto Egito (especificamente em Naqada/Ombos), é de suma importância ressaltar que no período pré-dinástico Seth era tido como um deus essencialmente benévolo, pois segundo a crença primitiva ele auxiliava o deus Rá na luta contra a serpente Apófis. Destarte, os adeptos ao seu culto provinham dos mais altos estratos da sociedade egípcia, o que demonstra que o deus não possuía uma posição subalterna aos olhos da sociedade egípcia.
Com a evolução da personagem no panteão dos deuses egípcios, sabe-se que Seth passara a antagonista no relato religioso devido ao conflito de sucessão entre ele e Hórus. Antes, no entanto, compete descrever de forma breve o início deste conflito mitológico dentro do panteão dos deuses.
Sendo filhos de Nut e Geb, os deuses Osíris, Ísis, Néftis e Seth eram, portanto, irmãos. Quando do plano de Seth para dar cabo à vida de Osíris – visando ocupar a posição que pertencia ao irmão –, sabe-se que da consumação da morte de Osíris em diante Seth passa a carregar a imagem do “usurpador” ante os demais deuses. Com a morte do pai, Hórus – o herdeiro legítimo – reclama o trono que era seu por direito, mas encontra uma feroz resistência por parte de Seth, que passa a travar uma batalha sem precedentes contra seu sobrinho.
Quando Seth por fim consegue ser contido pelos demais deuses e julgado (segunda a tradição mais popular), Seth é condenado a carregar a barca do deus Rá em suas costas por toda a eternidade, para que o deus do Sol pudesse largar dos remos da barca e enfrentar a serpente Apófis.
E é a partir deste conflito que envolve traição (a conspiração contra o próprio irmão), vingança (o embate de Hórus contra o tio usurpador) e condenação que Seth passa a ter a sua imagem demonizada (lato sensu), tornando-se um deus essencialmente mal a partir do Terceiro Período Intermediário (1070-712 a.C.).
Sua própria representação artística reflete muito de sua essência caótica: Seth aparece na maioria das representações como um ser antropozoomorfo, misto de homem com animais como cachorro, crocodilo, porco, asno, escorpião, hipopótamo e mesmo o aardvark - este um animal que se distribui por todas as planícies e savanas do sul da África, sendo também conhecido como “porco-da-terra”. Quanto aos animais, devemos lembrar que o crocodilo, o escorpião e o hipopótamo eram animais muito temidos pelos egípcios – e ao ser associado a estes animais, o deus passava a representar uma divindade essencialmente caótica e perigosa.